domingo, 22 de novembro de 2015

VINTE
Moisés entrou no quarto dos meninos mais novos e, pela primeira vez, percebeu o que estava errado. Errado no seu modo de pensar. Viu o berço de João Batista encostado à parede perto da janela. O menino dormia tranquilamente. Salomão sorriu para o pai. Sua cama ficava colada ao berço, como ele quisera logo após o desaparecimento da mãe. Tudo em ordem. Viu Levi deitado na cama do meio, quase dormindo, quase acordado. Certo. Foi na cama dos gêmeos que viu algo que não estava correto aos seus olhos e, portanto, aos olhos de Deus.
Esaú e Jacó ainda dormiam juntos na mesma cama, embora já fossem grandes com 13 anos. O que tinha a mancha negra na testa estava abraçado ao outro, por trás, e ambos dormiam profundamente. Nenhuma maldade havia entre eles, de modo que nada de mal passou pela mente de Moisés. Simplesmente achou errado que ainda dormissem daquele jeito quando havia uma cama sobrando no outro quarto: a cama de Josué. Talvez já até tivesse pensado naquilo. Mas bem no fundo ainda tinha uma esperança de a mulher e o filho mais velho voltarem.
Delicadamente ergueu Esaú em seus fortes braços de pai e levou-o para fora daquele quarto. Levou-o para o outro e colocou-o na cama de Josué. Davi sentou-se e quis saber por que o pai estava fazendo aquilo.
— Não quero mais os dois dormindo na mesma cama pequena. Já estão virando homens.
— Pai, acho que eles não vão gostar.  — disse Isaque, sorrindo, mas sentindo pena dos gêmeos.
— Por que não? Eles são gêmeos, mas não são um só. Não vão ficar o resto da vida grudados um no outro. Agora durmam com Deus. — finalizou, cobrindo Esaú.

(...)

VINTE E DOIS
Jacó foi o primeiro a acordar na madrugada. Despertou a todos com os gritos desesperados. Apenas de pijama, andou pela casa toda, no escuro, como se algo terrível tivesse acontecido.
— Esaú, Esaú, cadê você? Esaú!
Depois ficou calado, parado diante da porta do pai, tentando resolver se entrava ou não. Por fim, o medo falou mais alto. Não o medo que tinha do pai. Mas o medo de perder o irmão. Abriu a porta e entrou gritando:
— Pai, pai, acorda, pai, por favor. O Esaú desapareceu, pai. O Esaú desapareceu.
Estava chorando. Moisés acendeu o lampião e abraçou o menino, tentando acalmá-lo. Só agora percebia que havia cometido um erro. Devia tê-los acordado antes de separá-los. Quando o menino acalmou-se, todos os outros já estavam acordados. Apareceram à porta do quarto do pai. E Esaú entrou, chamando pelo irmão.
— Esaú! — exclamou Jacó, soltando-se dos braços do pai e correndo para abraçar o irmão. E assim ficaram durante os minutos em que o pai explicava o acontecido e o que ia acontecer dali em diante.
Eles ainda tentaram protestar, mas o pai foi irredutível. E no momento ninguém pensou numa ideia melhor, que não fizesse os gêmeos sofrerem. Era doloroso para eles quando chegava o momento de se separarem para dormir, quando tinham dormido juntos durante 13 anos. Era doloroso vê-los sofrendo com isso, como se ambos fossem ao mesmo tempo para mortes diferentes.
Dois dias depois, vendo que Esaú não acordava, embora já tivesse amanhecido, Davi voltou ao quarto e descobriu que o irmão ardia em febre altíssima, e delirava, chamando pelo irmão gêmeo e pela mãe. Foi atrás de Jacó e só o encontrou no outro quarto, no mesmo estado, gemendo e delirando com a alta temperatura do corpo.
Davi correu a avisar o pai, que veio preocupado, sem saber o que fazer.
— Senhor, me ilumina, por favor. Como é que eu posso deixar esses dois meninos, que estão virando homens, dormirem na mesma cama?
Foi então que a ideia surgiu. Davi sentia muita pena dos irmãos, do sofrimento deles. Aproximou-se do pai e disse:
— Pai, por que o senhor não coloca a cama do Josué lá no quarto deles? Aí eles podem dormir juntos, cada um numa cama.

Moisés sorriu e agradeceu a Deus pela ideia que viera à cabeça do filho. E então assim foi feito. No dia seguinte os gêmeos estavam curados. E felizes. E abençoadamente juntos. Juntos na vida. Juntos na morte...

terça-feira, 2 de junho de 2015

RESENHA DA ESCRITORA VIVIAN DE MORAES

"Atire a primeira pedra"
Com "Todos os pecados" (Kazuá, 2015), o escritor Elias Araujo estreia em livro com um romance. Já detentor de diversos prêmios literários, o autor buscou na formação religiosa, nas lembranças da infância no campo e numa mente aberta e inquiridora, muitas vezes implacável, as inspirações para o seu "début" literário.
Quando tratou com os editores, fez-lhes um pedido: uma porteira na capa da obra. Essa porteira, que se repete no canto da página a cada novo capítulo, pode ser considerada a personagem principal da história, já que as pessoas, na sua obra, são um tanto insondáveis, e a descrição é a maior marca do livro. Eventualmente, Araujo utiliza o estilo indireto livre, que dá acesso ao coração das personagens, mas não abusa. O estilo é direto, faz-se, pensa-se e pronto, o Mal está feito na família de evangélicos que é o centro do enredo.
Mesmo assim, não dá para dizer que o livro é maniqueísta. O narrador em terceira pessoa olha com carinho para cada membro da família de Moisés, composta por ele, sua mulher Sara e os filhos Josué, Davi, Isaque, Levi, Salomão e João Batista.
Com um começo em que o pai e chefe da temida família observa a chuva fecundar as terras do seu sítio, e por isso agradecendo a Deus, o livro não deixa lugar a que o leitor imagine que qualquer tipo de tragédia ocorra com aquela família. O problema inicial é Sara, mulher dez anos mais nova que Moisés, e que "sorri amarelo" para Moisés, não participando do coração transbordante de gratidão a Deus daquele homem que sonha em ser pastor.
A verdade vai surgindo à medida em que a leitura avança, e avança rápido. Os acontecimentos são vertiginosos. E aquela porteira, que poderia ser a personagem principal do livro, ou talvez, se Araujo se propusesse fazer um livro mais fantástico, poderia ser o próprio narrador da história, vê sair por ela, um a um, os seis filhos. Porque todos os pecados são cometidos.
Se o leitor quiser julgar, mas for indulgente, crerá que o maior pecador é o próprio Moisés, o patriarca que rege com mão de ferro a família. Os pecados dos parentes parecem pouco perto da rigidez daquele homem. Mas será que é isso o que faz a família inteira pecar? Pode-se dizer que esse é o grande dilema da história.
Mas a porteira que vê sair, também vê chegar. Na última cena. Uma reconciliação ocorre, para um leitor que, chegando ao fim do livro, já está completamente tomado de emoção.
Emoção é o forte do livro e contrasta com o tom seco da narração: uma proeza de Araujo. Mas nessa secura, surge aqui e ali, uma ou outra expressão metafórica de grande beleza, como na página 199: "E então não conseguiu mais parar. Nem de amar as mulheres daquele seu jeito suado que elas adoravam. Nem de promover a amizade entre uma pessoa e a morte".
Morte, mutilação, dor, vergonha, medo, obstinação, incesto, fé, esperança, sonho, realização, perda e reencontro: tudo isso está em "Todos os pecados". Incluindo, é claro, os próprios pecados.
Se você quiser ser o leitor dessa história fascinante, quem irá atirar a primeira pedra?